terça-feira, 11 de maio de 2010

Silêncio, que não se vai ouvir o requiem

No âmbito dos contratos públicos, a doutrina é divergente quanto à sua qualificação. Uns, seguindo a ideia da professora Maria João Estorninho, vêm desde há muito apoiando a ideia da não separação entre contratos administrativos e contratos da administração de natureza privada. Outros, por via de uma lógica esquizofrénica, mantêm-se fieis à bipartição dos contratos administrativos.
A lógica de uma Administração de poder dificilmente se compatibiliza com a ideia de contrato. Como se sabe, o contrato consiste numa relação bilateral com lógica de igualdade das partes, enquanto a actuação de uma Administração com poderes exorbitantes se caracteriza pela sua natureza unilateral. No âmbito do contencioso administrativo francês nasce a necessidade de atribuir privilégio do foro a certo tipo de contratos celebrados pela Administração Pública (abastecimento de gás numa cidade). Este contratos consistiam nos mais importantes a nível económico e também os mais relevantes no âmbito das funções administrativas na sua lógica minimalista. Contudo, o contrato era sempre visto como uma excepção de actuação, dado que a actuação administrativa era claramente actocêntrica.
Esta consequência prática é então teorizada, e inicia-se na doutrina a tradição da separação entre contratos administrativos, julgados nas instâncias administrativas, e contratos da administração de direito privado julgados em tribunais comuns.
Esta distinção não se afigura pertinente. A diferença entre contrato administrativo e privado não é justificativa. Estes últimos tratam-se de contratos de direito administrativo, submetidos aos princípios de direito administrativo e a decisão de contrato é uma decisão pública. Quanto aos contratos administrativos, a sua natureza não é suficientemente caracterizada para que a distinção seja necessária. Não nos encontramos hoje numa lógica de poderes exorbitantes da administração em que certos contratos necessitam de se encontrar providos de privilegio de foro. A lógica mudou, o contrato passa a ser uma das várias actuações possíveis da Administração, pelo que as razões práticas do século XIX que levam a esta distinção não fazem hoje sentido.
Esta ideia tem sido defendida pela professora Maria João Estorninho, Professor Vasco Pereira da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa.
A europeização administrativa vem engrandecer esta doutrina na medida em que não prevê qualquer distinção deste tipo. Com os diferentes regimes vigentes no âmbito europeu, foi necessário encontrar critérios aplicáveis a sistemas de matriz francesa, alemã e anglo-saxónica. Assim, a UE vai optar por estabelecer regras para certos tipos de contratos, independentemente da sua sua classificação interna.Cria um regime especial para os contratos que correspondem ao conceito europeu de exercício de actividade administrativa. Por outro lado, selecciona sectores da sociedade de grande relevo em que se segue um regime especial de contratação (água, energia etc.) . Estes contratos têm sempre natureza pública, sendo celebrados por agentes públicos ou privados.
As directivas europeias criam assim um regime comum de contratos em termos substantivos, procedimentais e contenciosos. O Tribunal Administrativo é agora competente para decidir em qualquer tipo de contrato.
Contudo, estas directivas deixam ainda alguma margem de discricionariedade ao legislador nacional. Em Portugal, a transposição destas directivas conta ainda com um resquício da lógica esquizofrénica da distinção de contratos, apoiada por Sérvulo Correia e Rui Medeiros.
O legislador cria no Código de Contratação Pública um regime amplo de contrato público, em que se insere todo o tipo de exercício de função administrativa, criando em simultâneo uma subespécie de contratos administrativos. O critério de distinção utilizado pelo Supremo Tribunal Administrativo é o do "ambiente de direito público". Aqui se pretende englobar os contratos tipicamente administrativos. Quanto a nós, não nos parece correcto que um critério meramente olfactivo seja fundamento de distinção.
O CCP cria um regime comum a todos os contratos públicos e adiciona requisitos aos contratos administrativos.
Como se vê, apesar dos avanços europeus e de uma boa doutrina que contesta a distinção esquizofrénica, o legislador português em 2008 opta ainda pela lógica da distinção. De certo que se trata de uma distinção em termos menos absolutos do que aqueles propostos pelo Professor Marcelo Caetano, mas a diferenciação não deixa de ser significativa. De certa maneira, adiciona-se mais uma distinção àquelas já traçadas pela UE numa lógica horizontal para todos os Estados Membros. Poder-se-à questionar se esta distinção contraria o espírito das directivas em causa, visto que elas visam um regime comum a toda a UE, sem que mais distinções se mostrem necessárias.
Configura-se interessante o facto de em 2004, o legislador não introduzir no Código de Processo Administrativo qualquer tipo de distinção (artigo 4º).
Não se ouve ainda o requiem desta distinção no âmbito procedimental e substancial. Talvez por falta de coragem, talvez por falta de psicanálise.

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