quarta-feira, 5 de maio de 2010

O Complexo de Édipo do Regulamento

Afirma o Professor Freitas do Amaral que os regulamentos administrativos são "as normas jurídicas emanadas por uma autoridade administrativa no desempenho do poder administrativo" (in "Direito Administrativo" do Professor Freitas do Amaral, Vol. III, 1989, pág. 13), logo um regulamento administrativo exprime regras de conduta (verdadeiras e próprias regras de direito que podem ser impostas) dotadas de generalidade e abstracção, i.e., aplicam-se a uma pluralidade de destinatários, definidos através de conceitos ou categorias universais, e os seus comandos não se esgotam numa aplicação; aplicam-se sempre que se verifiquem as situações típicas que nele se encontrem previstas.
Unem-se aqui dois poderes de soberania que desde as revoluções liberais se tentaram separar. O poder executivo é exercido através de uma aparente norma jurídica, geral e abstracta. Observa-se assim a execução através de um meio "legislativo".
Há contudo que "separar as águas", hierarquicamente um regulamento está dependente da lei, quer seja a lei que desenvolve quer seja a lei que atribui a competência subjectiva e objectiva ao órgão para emitir o regulamento.
Observamos assim que somente autoridades administrativas podem emanar regulamentos, regulamentos esses intrinsecamente dependentes da lei, ao qual estão pelo menos ligados umbilicalmente.
Será então a lei a entidade maternal do regulamento, que o alimenta no nascimento, do qual nasce e com o qual terá sempre uma relação de dependência, e a entidade administrativa que a emana a sua entidade paternal, que o tenta separar da mãe depois de o conceber, criando sempre uma relação de conflito com o filho.
Chegamos então ao cerne da questão em análise. Devido à infância pouco saudável do regulamento, em que os pais se viram forçados a separar depois de anos "absolutamente" unidos em "sagrado matrimónio", esta pequena criança chamada regulamento criou traumas de infância que não conseguiu superar no ordenamento jurídico português onde os seus progenitores se voltaram a unir numa nova instituição a que se deu o nome de Governo.
O Governo é o órgão superior da Administração Pública e detém poder legislativo próprio. Unem-se novamente os progenitores há tanto separados.
Esta união despoletou aquilo a que os psiquiatras intitulam de complexo de Édipo, não tanto da instituição do Governo (que pode aprovar regulamentos independentes, ou seja inovadores na ordem jurídica sem a dependência de uma lei) , mas na relação entre a Lei e a Administração.
O complexo de Édipo caracteriza-se por sentimentos contraditórios de amor e hostilidade. Metaforicamente, este conceito é visto como amor à mãe e ódio ao pai; amor à mãe que a protege e que ama e ódio ao pai que concorre com ela no amor à mãe. Inspirado na tragédia de Sófocles, Freud concebe o complexo de Édipo como o filho que mata o pai e que depois casa com a mãe, levado pela sua energia libidinosa a tais acções que sabe estarem erradas e que nele provocam um extremo sentimento de culpa.
Aparentemente a segunda infância do regulamento é perfeitamente saudável, contudo a nossa jurisprudência e alguma doutrina tende a "deseducar" o regulamento.
Esteves de Oliveira e outros, no seu Código do Procedimento Administrativo Comentado (2.ª edição, pág. 84, «in fine») sutentam a impossibilidade de a jurisdição administrativa declarar a ilegalidade de regulamentos em virtude de eles ofenderem princípios que, embora também previstos no CPA estejam acolhidos na Lei Fundamental. Argumento que a jurisprudência leva ao extremo ao não aplicar os artigos 3º e seguintes do C.P.A. aos actos regulamentares emitidos por uma entidade administrativa, como aliás se pode observar no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30-09-2009.
Este argumento afirma que a validade de um regulamento está intrinsecamente ligada à lei de que é dependente, sendo por isso de averiguar apenas a constitucionalidade dessa lei e não a ilegalidade do regulamento.
Logicamente percebe-se o argumento de não se inquinar como ilegal algo inconstitucional, contudo há diversos perigos na utilização deste argumento.
Ao impedir a aplicação dos princípios plasmados no C.P.A. aos Regulamentos, por estes estarem dependentes de uma lei (ou de habilitação ou da que visam executar) que constitui ela própria os limites de actuação da administração, estamos a tornar a administração como simples "mãos que executam a lei", quando sabemos que, ao actuar, ou a vincular a sua actuação futura (através de regulamentos) a administração tem consigo um amplo poder discricionário, seja de interpretação seja até de aplicação, tendo um amplo espaço para decidir como moldar o regulamento. Ao limitar os regulamentos apenas pela lei a que estão ligados, esquece-se a figura paternal, a Administração, que embora "odiada" pelo Regulamento, é quem o interpreta e lhe dá parte dos genes.
Ao não balizar os regulamentos administrativos pelos princípios do procedimento administrativo estamos a deixar que o poder regulamentar se case com a Lei e que despreze a Administração, o que pode levar o regulamento a violar os princípios dos artigos 3º e seguintes do C.P.A., não violando contundo a Constituição, uma vez estes princípios estão mais concretizados no primeiro do que na segunda. Ao aferir a validade de um regulamento pela constitucionalidade da Lei de que depende, estamos apenas a observar metade do que é um regulamento, pois estamos só a ter em conta a sua entidade maternal, esquecendo-nos que um regulamento pode, com autorização, habilitação, ou para complementar uma lei constitucionalmente válida, ter uma margem de discricionariedade na sua elaboração que permite o nascimento de um regulamento manifestamente contrário aos princípios do C.P.A., sendo contudo a lei que o habilitou válida.
Resumindo, seguindo a doutrina citada e a orientação jurisprudencial, teríamos de admitir como válidos regulamentos manifestamente violadores dos Princípios da Actuação Administrativa, mas cujas leis de que estão dependentes fossem válidas. Estaríamos a vincular validamente a actuação da Administração por um regulamento que a obrigaria a actuar de forma contrária aos princípios do Procedimento Administrativo, uma vez que os regulamentos têm obrigatoriedade.
Poderíamos com toda a certeza avaliar a validade do acto que decorre da aplicação de um regulamento válido contrário aos princípios do C.P.A., mas estranha-me que seja válido na ordem jurídica um Regulamento que obriga a uma actuação invalida da administração.
Vemos assim como a jurisprudência e a doutrina obrigam o regulamento a vazar os seus olhos ao obriga-lo a casar com a mãe, traindo o seu pai.

Agradeço que os meus colegas leiam este pequeno devaneio que para mim foi útil , não como teoria doutrinária sobre os regulamentos, uma vez que não observei todas as posições existentes sobre o assunto, mas sim como forma de tornar interessante estas matérias.
Terei todo o gosto em receber opiniões contrárias.

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