domingo, 18 de abril de 2010

Os argumentos do inimigo

Na aula passada, ao resolvermos o caso prático, deparamos-nos com a divergência doutrinal quanto às consequências da falta de audiência pública no âmbito do procedimento administrativo.
Como vimos, o direito à audiência pública vem previsto constitucionalmente (267 nº5 CRP), bem como nos artigos 100-105º do CPA. A regra é a da obrigatoriedade da audiência prévia, salvo algumas excepções (artigo 103 nº1 e 2 CPA).
Cumpre agora analisar quais as consequências da falta de audiência prévia dos interessados, quando obrigatória por lei. Não há dúvida que a sua omissão constitui uma ilegalidade. A doutrina diverge sobre se a sanção prevista na lei para esta ilegalidade será a nulidade ou a anulabilidade.
Como vimos na aula, a " boa doutrina" entende que a violação deste dever da Administração se consubstancia numa nulidade. O professor Vasco Pereira da Silva entende que se trata aqui da violação de uma norma de conteúdo fundamental (133º CPA - nulidade), enquanto o professor Marcelo Rebelo de Sousa entende que existe preterição de elemento constitutivo essencial do acto, cuja consequência é a da nulidade.
Contudo, tanto o professor Freitas do Amaral como o Supremo Tribunal Administrativo têm entendido que a sanção adequada será a da anulabilidade.
Segundo o professor Freitas do Amaral, o direito a audiência pública não se trata de um direito fundamental. Trata-se sim de um direito subjectivo público dos particulares com uma enorme relevância no âmbito da protecção destes face à Administração Pública. O professor não inclui este direito no elenco dos direitos fundamentais, visto que interpreta este conceito de um modo restritivo. Considera que apenas podem ser considerados direitos fundamentais aqueles que se encontram mais directamente ligados à protecção da dignidade da pessoa humana. O STA tem seguido esta orientação.
Logicamente, a diferença de concepções irá ter consequências de índole prática. Como se sabe, a nulidade é um vício que inquina o acto desde logo. Se nulo, o acto não produz nunca efeitos. A nulidade não tem de ser invocada para que o acto não produza efeitos. Por sua vez, a anulabilidade tem de ser invocada. Apesar de o acto nascer inválido, ele vai produzir os seus efeitos até à invocação da anulabilidade. A legitimidade para a invocação da anulabilidade é reduzida e esta pode nunca acontecer. O acto pode produzir efeitos no futuro sem que haja revogação anulatória por parte do orgão competente.A declaração terá eficácia retroactiva.
A nulidade é uma consequência mais gravosa, que não constitui regra no direito Administrativo ( 133º CPA). A anulabilidade constitui a regra (135º CPA), não nos parecendo contudo a solução aqui mais adequada pela gravidade que representa a falta de audiência dos particulares no âmbito do procedimento administrativo.

2 comentários:

  1. Percebo a posição do Professor Freitas do Amaral, mas não poderia discordar mais do argumento que utiliza para a sustentar.

    Os direitos económicos, sociais e culturais encontram-se tão ligados à dignidade da pessoa humana (senão mais), como os direitos, liberdades e garantias.

    O princípio da dignidade da pessoa humana não é um princípio estanque e impermeável à evolução dos tempos. Não ficou preso à perspectiva burguesa da realidade e da sociedade do Estado Liberal. A sociedade evoluiu, assim como o conceito de Estado e os seus princípios.

    Se um cidadão viver na miséria, sem qualquer auxílio do Estado (no âmbito da protecção dos direitos económicos e sociais) como poderá ele exercer os seus direitos civis e políticos?

    Os direitos económicos, sociais e culturais criam as condições necessárias ao exercício efectivo dos direitos, liberdades e garantias.

    Esta é a realidade actual, o mundo já despertou e está a procurar actuar dentro desta realidade. O Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais aprovado pelos Estados que fazem parte das Nações Unidas é prova disso mesmo.

    É verdadeiramente necessário que interpretemos o Direito à luz dos dias de hoje de modo a que consigamos proteger eficazmente os cidadãos de hoje.

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  2. Relativamente à questão da aproximação entre os direitos económicos, sociais e culturais e o princípio da dignidade da pessoa humana, que me parece da maior importância, há que ter em conta que o papel desses direitos não constitui pacificidade de opiniões na doutrina. A minha opinião no que concerne a este aspecto assemelha-se à da Maria, no entanto, é de assumir que a concretização desses direitos depende fortemente do Estado que se visa atingir. Penso que à luz da actualidade (contanto ainda que temos um Estado Social em mãos, mesmo que haja a tendência para o seu desaparecimento ou, antes, modificação), não se apresenta justo, à luz de um Estado Social, não considerar essa categoria de direitos como verdadeiros direitos, mesmo que careçam de concretização prática. Sabemos que esses direitos, sendo programáticos, não têm a mesma força jurídica das normas preceptivas pela sua própria natureza; mas, quando possiveis de concretização, têm. São vinculativas e não puros "aleluias jurídicos", cujo contorno material tem extrema importância. Ou não seriam normas constitucionais. É principalmente por essa força conferida constitucionalmente (embora haja remissão para a lei) que não percebo por que não se há-de considerar a inobservância do dever de audiência como tendo como consequência a nulidade, em vez do regime regra da anulabilidade.

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